02 novembro 2006

Pineu! Deita pineu! (9)


10. Conclusões

"(...) a força do fogo é tanto mais forte quanto mais comprimida e apertada estiver" - Jean-Pierre Fabre, 1636, citado em Bachelard, Gaston, A psicanálise do fogo. Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 8

"No tempo de Samora havia ordem, agora só há bandidos" (moradores dos bairros periféricos de Maputo em entrevista comigo)

Escreveu Bachelard que se o que se modifica lentamente se explica pela vida, o que se modifica depressa explica-se pelo fogo.
Ora, essa bela visão permite, quanto a mim, dar visibilidade paradigmática a todo um processo acumulativo de problemas (a vida dos bairros periféricos de Maputo) , problemas que um dia transbordam porque demasiado comprimidos entre as margens da vida e, subitamente, nas possibilidades abertas de uma bifurcação, dão origem a um clímax brutal, dinamogénico, final (os linchamentos pelo fogo). No contexto das palavras de Fabre, mais acima referido, a força do fogo estava demasiado comprimida.
Com efeito, o quadro social que apresentámos mostra uma saturação social grande, uma angústia grande, uma impotência grande.
Os moradores dos bairros periféricos da grande Maputo sentiram-se e sentem-se como se poluídos pelo mal que os corrói, pela insegurança que os atemoriza, pelo abandono a que o Estado os deixou e deixa.
Lutando em meio a um mar de problemas de sobrevivência, eles chegaram e chegam a um limite a partir do qual não há mais retorno. Não foi nem é a insegurança ou a falta de protecção em si que esteve e está na origem dos linchamentos, mas, antes, a multiplicidade dos problemas sociais de sobrevivência. É esta multiplicidade, essa multipolaridade de problemas sociais que percute, ampliando-a desmesuradamente, a consciência aguda da insegurança que tem na protecção da vida e dos haveres um dos seus eixos basilares.
Eclipsada a razão, libertada a emoção, cidadãos pacíficos tornaram e tornam-se, repentinamente, vozes de uma natureza em fúria. Tornam-se maus não porque sejam maus em si, mas porque - assim sentem - a vida é e maus os torna.
Decidiram e decidem fazer justiça por suas próprias mãos, decidiram e decidem ignorar os caminhos normais da lei, decidiram que poderiam tentar ter paz da forma mais brutal que pode haver: tirar a vida pelo fogo a um ser humano, culpado ou inocente. E depois, consumado o acto, sentem-se felizes porque julgam ter evacuado o mal.
O vazio institucional que sentiram e sentem é tão grande, que parece terem perdido a confiança total na polícia. "Aqui não é coisa de partidos, aqui todos nós sentimos. Bairros estão cheios de armas, mesmo de polícias" - disseram-me os moradores dos bairros.
A opção pelo exército, a busca aparente de soluções fortes diz bem do estado emocional em que se encontram.
E é justamente nesse contexto que a figura de Samora Machel é constantemente recordada nos bairros. "No tempo de Samora havia ordem, agora só há bandidos" - em uníssono me disseram os dez moradores que entrevistei.
Assim, recuperado na memória ferida, Samora aparece como o justiceiro, o redentor, como aquele que poderia trazer paz e ordem social aos bairros periféricos da grande Maputo.
Os linchamentos são mais do que um exercício brutal de justiça arbitrária: são, também, um aviso ao Estado, não porque os moradores o recusem, mas porque desejam um Estado diferente, um Estado redistribuidor, um Estado que proteja os cidadãos.
Portanto, tomar medidas violentas, enérgicas, para debelar o problema, apenas contribuirá para agravá-lo.
Um fogo nunca se apaga com outro fogo.
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E assim cheguei ao fim desta série dedicada aos linchamentos. Desejo que ela possa contribuir para reflectirmos profundamente sobre um fenómeno que, tudo leva a crer, é mais do que súbito: é cíclico. Como repararam, eu furtei-me completamente ao coro das vozes que no país apenas pedem, na imprensa e em reuniões magnas, o fim da violência sem a estudarem e, portanto, sem a compreenderem. E estou certo de que há gente iluminada que nem precisa de compreender o que quer que seja, salvo a linguagem do bastão e da repressão. Por outro lado, eu não estive nem estou a dar razão aos linchadores. O que fiz e faço é tentar perceber a lógica que organiza o perfil do seu comportamento. E fazendo-o, estou certo de que nem todos me darão razão. O que é compreensível, tal como argumentei ao tentar definir a sociologia logo no início desta série. Vou recordar o que então escrevi a 28 de Outubro, no terceiro número desta série: "O produto final da construção teórica é uma sociedade cujas lógicas de funcionamento nem sempre correspondem às lógicas quer da consciência imediata dos actores sociais em geral, quer da consciência interessada dos produtores oficiais de opinião. Por isso nem sempre a construção sociológica agrada às lógicas de uns e de outros."

3 comentários:

Anónimo disse...

Acompanhando o estudo do prof. Serra e o debate suscitado por ele, ocorreu-me a dúvida: os linchamentos, afinal, têm intimidado os verdadeiros bandidos? Sabe-se de alguma queda na ocorrência de delitos nos bairros onde os linchamentos têm acontecido?
Pergunto porque, talvez, o sentimento de segurança, de ordem reestabelecida, ainda que provisória, que os linchadores reencontram não seja de todo ilusório, talvez percebam que o número de delitos recua com os linchamentos, por intimidarem os verdadeiros delinquentes. Talvez...
Se assim for, penso que daria mais um bom 'pano para manga' como se diz aqui no Brasil, ou seja, a discussão iria
até bem mais longe e o estudo se ampliaria ainda mais.

Carlos Serra disse...

Bem, por agora não tenho indicadores que me permitam responder às suas perguntas. Mas tb não tenho indicação de novos linchamentos.

Carlos Serra disse...

A sua visão do fenómeno como erupção vulcânica parece-me adequada. E apraz-me registar que o Wetela escapa à onda dos proponentes de mais punição sugerindo mecanismos de inclusão social.