02 outubro 2006

Uma análise dos linchamentos na cidade de Maputo


Faz já algums meses que os linchamentos regressaram à cidade de Maputo, após um interregno desde os anos 90. Cidadãos estão a ser linchados acusados de roubo e/ou de assassinato.
Os referenciais que a imprensa fornece, designadamente o "Notícias", apontam para uma crise de confiança nas instituições encarregadas de zelar pela ordem pública. Um exemplo está no facto de moradores do bairro T3 na Matola terem, recentemente, chamado curandeiros para resolverem o que era e é suposto não ser resolvido pela polícia e pelos tribunais.
Aparentemente e fazendo fé nos depoimentos que nos são dados a conhecer, existe uma ligação directa entre a dupla roubo/assassinato e a impunidade dos autores, seja porque não são detidos, seja porque quando detidos são pouco depois postos em liberdade pela polícia.
Não investiguei essa correlação eventual.
Mas os linchamentos sucedem-se e só esta semana três cidadãos foram suas vítimas através do método sul-africano do pneu regado e incendiado com combustível. Um quarto conseguiu escapar, mas foi severamente agredido.
Existe, de facto, uma crise social que se expressa pelo sacrifício de uma vítima, culpada ou inocente. Esse sacrifício é executado à margem da polícia, completamente ignorante dela.
As noites são propícias à indiferenciação e pode bastar alguém passar em algum local depois da meia-noite para se tornar rapidamente presa de uma multidão enfurecida. A vítima pode ser escolhida não em função de um crime realmente cometido, mas em função de sinais suspeitos, comprometedores, como a hora de passagem, a ociosidade, a furtividade, a fuga eventual se interpelada, etc.
Nesses momentos dramáticos, o eclipse da razão é imediato. Qualquer pessoa pode num ápice passar de simples passante a perigoso cadastrado. A suspeita, um grito e imediatamente uma multidão forma-se e, em mimese galopante, intercepta o suposto ladrão ou assassino. Nenhuma possibilidade de defesa. Segue-se o linchamento.
Porém, creio que o roubo e o assassinato são apenas a ponta do iceberg: à sua retaguarda habitam problemas sociais mais graves que precisam de ser investigados. Importa saber encontrar com urgência o fio de Ariane.
Os bairros parecem, na verdade, viver uma espécie de indiferenciação cultural desesperada: qualquer pessoa pode ser roubada ou morta, a polícia é acusada de pouco ou nada fazer. Tudo parece nivelado. E é em momentos assim que se formam a descarga sacrificial e a busca desenfreada e inexoravelmente lógica de um exutório. Este exutório, esta vítima, pode ser um cidadão inocente.
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Ninguém melhor do que René Girard analisou o fenómeno da crise social, do mecanismo sacrificial e da busca do bode expiatório. Veja o seu clássico Le bouc émissaire. Paris: Éditions Grasset&Fasquelle, 1982.
Entretanto, recordo que numa entrada já antiga esbocei uma análise do fenómeno.
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Adenda: reproduzido na edição de hoje (o4/10/06) do "Notícias":
http://www.jornalnoticias.co.mz/pt/topoption/56

4 comentários:

Anónimo disse...

Esse actos são racionais?
(Um curioso)

Carlos Serra disse...

Leia a nova entrada.

Marga F. Rosende disse...

Si, los robos y asesinatos son solo la punta del iceberg. A veces se confunden los síntomas de la enfermedad con la enfermedad misma...es más cómodo.

Carlos Serra disse...

Tentarei responder logo que possa...