29 abril 2006

Manifesto de re-humanização

É na esteira da humildade que devemos sempre tomar os nossos trabalhos de pesquisa não como pontos de chegada, mas como pontos de partida, irrevogavelmente permanentes nessa situação. É também na esteira dessa humildade que devemos, na verdade, esquecer por completo as nossas famosas teses de doutoramento, esse frigoríficos que congelam a ousadia.
E se tivermos que verificar se os nossos resultados estão certos, façamo-lo não tanto no interior do que escrevemos, aferindo a hipótese, re-analisando as escalas, reconsultando os documentos dos arquivos, construindo laboriosos aparelhos de indagação, mas, especialmente, dirigindo-nos primeiro a nós-próprios e, depois, a quem observámos, analisámos, àqueles com quem conversámos, àqueles a quem administrámos os nossos questionários.
É fundamental tornarmo-nos investigadores da nossa própria investigação. Isso é muito difícil, por numerosas razões, claro, mas essa é a unica hipótese que temos de sobreviver num mundo onde, por exemplo, quanto mais investigamos e escrevemos sobre o desemprego mais este aumenta. E se formos historiadores, estudando quem já morreu, saibamos que para compreender todo o problema “morto”, é necessário que ao menos uma vez na nossa vida nos tenhamos debatido com um problema vivo. Porque, ao fim e ao cabo, nós nunca estudamos mortos como historiadores, mas vivos, os nossos vivos telescopizados para o passado.
Tenhamos a saudável humildade de reconhecer que as nossas conclusões estão erradas por mais certas que nos pareçam ou por mais que a realidade empírica as comprove, em parte ou no todo. Deixemos de ser ptolomaicos!
Repeguemos no pincel, no escopro, no cinzel, no buril e recomeçemos a pintar, a esculpir, sempre, sem parar, porque, na realidade, a determinação dos seres humanos está na sua indeterminação.
Re-interroguemos, recomecemos. Porque a nossa tarefa principal é a de compreender (acto que, afinal, é sempre o de explicar), e para chegarmos aí temos de nos compreender primeiro a nós-mesmos.
Na verdade, o que nós, muitas vezes, analisamos no outro é o que somos, o que não somos, o que não pudemos ser, o que nós gostaríamos de ser ou não, o que amamos, o que odiamos. O nosso ponto de vista sobre os outros é um ponto de vista sobre nós tornado interrogação ou exercício face ao ponto de vista que também é o do outro, produzido com ternura ou ódio ou ambas as coisas, arremessado ao outro, a quem fagocitamos fazendo o nosso ponto de vista parecer ser o dele.
Ou, então, é um ponto de vista saído de uma querela científica, marcado pela agressividade dessa querela. Aliás, não é por acaso que desde anos 70 os cientistas se tornaram, eles-próprios, objecto de estudo por parte de outros cientistas, do mesmo modo que outrora os antropólogos estudavam os chamados primitivos e os colonizados.
Antes de objectivarmos os outros, objectivemo-nos a nós-próprios, para que aqueles que analisamos se subjectivizem na razão directa em que nos tornamos, nós-próprios, mais objectivos e mais franqueados à verdadeira interface, à verdadeira compreensão.
O outro não está fora de nós, está afinal, dentro de nós, somos nós quem o produz na ilusão de que o estudamos objectivamente. Se, afinal, interferimos nos instrumentos de medida na astrofísica ou na mecânica quântica (ao contrário do que pensávamos no período da ciência clássica), com mais forte razão interferimos, interferimos completamente na avaliação e na “medição” dos outros seres humanos. Para evitarmos pensar nisso, acreditar nisso, inventámos as regras, o ritual, a sobriedade, o rigor semântico, a autoridade científica, o entorpecimento da emoção e do sentimento.
Façamos da nossa pesquisa um quadro ou uma escultura sempre inacabados e tentemos aceitar que quanto mais elevado for o beldevere de observação, o mirante, o ponto social onde nos situemos, o dos deserdados da terra, mais ampla e justa é a nossa visão, mais extensa e polivalente ela é.
As nossas ciências sociais serão assim utópicas, não no sentido de fuga do real, de evasão, mas no sentido de um horizonte e de um objectivo claros. É como se lançássemos uma bola a um rio em direcção à foz e depois nos atirássemos à corrente para a apanharmos, sem nunca o conseguirmos, mas, também, sem nunca a perdermos de vista e sem nunca desesperarmos. Teríamos sempre o horizonte (porque não perderíamos de vista a bola) e o objectivo (o de a apanhar, ainda que inacessível, com a crença de que um dia conseguiríamos chegar a ela).
Horizonte e objectivo traçados em função de uma luta pelos deserdados da terra e em prol do reencantamento social.

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