27 abril 2006

A configuração sociológica

Ontem eu ouvi um pouco na rádio o debate na Assembleia da República. Houve uma violenta troca de palavras entre membros da Frelimo (partido no poder) e membros da Renamo (partido na oposição). Escutando deliciado, lembrei-me de algo que escrevi anos atrás. Vou recordar.

Bastam poucos minutos de atenção para percebermos que o parlamento é uma configura­ção sociológica com dois extractos dominantes: o frelimiano e o renamiano. Em cada um deles, as pessoas são diferentes, as suas ideias são diferentes, as suas vidas sociais também. É muito possível que pessoas de cada extracto se contactem fora das fronteiras dos territórios políticos. Mas face a um proble­ma em debate sobre o qual é preciso tomar uma decisão, mesmo que esse problema não seja «de vida ou de morte», as dife­renças são regra geral apagadas em favor da delimitação instintiva das fronteiras do território partidário e o apontar dos canhões para os territórios partidários inimigos. Pessoas que são calmas tornam-se nervosas; pessoas nervosas tornam-se mais nervosas; pessoas que em outras circunstâncias não bateriam palmas, não troçariam, não vitupe­rariam, não alça­riam ombros, não teriam tão intenso dispêndio corporal e afectivo, batem palmas, troçam, vituperam, alçam ombros, mexem-se e zangam-se. Colidem gramáticas corpo-emocio­nais, anáte­mas, estigmas, ameaças, idiomas grupuais; entre­cho­cam símbo­los, heróis epónimos, bandeiras, representações sociais, histórias edificantes sobre as comunidades espirituais de origem, requisitos e hábitos culturais, componentes especí­ficas de honra étnica; expecta­tivas tornam-se práticas na confrontação, actualizam-se, determinam-se. Se se discutem, por exemplo, os privilégios do «Sul» em relação ao «Centro» e ao «Norte» do país, pessoas de cada uma dessas «regiões» dão-se braços dentro das fronteiras do partido X e do cimento aglutinador e nivelador dos seus ideais políticos contra os ideais do partido Y e/ou Z; machangane, vanhungué, maron­ga, makonde, vandau, não interessa quem, fede­ram-se à som­bra do partido X para lutar contra outras forma­ções com uma composição «étnica» idêntica, mesmo que individualmente sintam que os outros têm razão e que em outras circunstâncias se empe­nha­riam em ser ou fazer o que gostariam de ser ou fazer. E essa polaridade pode nascer mesmo em torno duma modesta estrada que não foi construída ou que se o foi, é suposto tê-lo sido mal.
Desafio-os a negar que estais diante de exemplos de etnici­dade, se esta for vista pelo ângulo da relação Nós/Eles.

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